segunda-feira, 11 de maio de 2009

"Hotel Abril", por Pedro Jubilot

‘HOTEL ABRIL’
Pedro Jubilot




O Portugal de 1973 era um país já demasiado triste e cansado, à espera que algo acontecesse.

Nos estádios de futebol, o pantera negra, que já dera o seu melhor, continuava exilado num país de que há muito o obrigaram a ser. Não podia sair da Luz, mas já começava a entrar no túnel da inevitável decadência.

A cantora, de tanto lhe doer a voz e a alma, incluía já no seu repertório canções de vários géneros e línguas, que se afastavam da essência do seu fado, indirectamente afastando-se da forçada colagem ao destino do seu país. No entanto, essa perda de identidade criativa, é que a mantinha ainda livre.

Na televisão, ainda a preto e branco, a nossa senhora de Fátima continuava a proteger semestralmente a nação de todos os males com a benção de um estado que continuava a chamar-se novo, ao fim de 48 anos.

E… uma juventude, que tinha de tornar-se adulta por força das circunstâncias da guerra ultramarina, da falta de estudos e de vida cultural, e de ter de arranjar um trabalho, pois que nesses anos os pais não ganhavam o suficiente para se poderem manter os filhos no sonho da ‘adolescência’ por muito tempo.

‘Trrrriiiiin…..trrrriiiiin….’ tocavam assim os telefones num som grave, orgânico, terrestre, subterrâneo e utilizavam-se para se dizerem coisas realmente importantes. Boas ou más. Por isso Augusto sentia um arrepio de cada vez que o ouvia. Tremia só de pensar, que lhe iam comunicar o dia e a hora de embarque para as colónias. Descansou ao ouvir a voz do seu amigo Jorge. Esta chamada era das boas. O que de melhor se podia arranjar por aqueles dias.

Assim, um conjunto recentemente formado por quatro músicos de Lisboa, vai fazer a passagem de ano a um hotel do Algarve. O reveillon correu tão bem que depois são contratados para banda residente da época baixa, isto é, até ao dia 31 de Maio. Nada mau naqueles difíceis tempos.

Embora os primeiros dias de Janeiro tenham sido chuvosos, e depois um pouco frios, fustigados pelo vento norte – logo o céu se limpou dando lugar a belos e azuis dias. Dias de Algarve.

O alto hotel sobre a praia permitia-lhes admirar os navios que cruzavam o oceano atlântico em direcção ao estreito de Gibraltar para entrarem no mar mediterrâneo.

Nos tempos livres limitam-se a fazer longos passeios pela praia, jogam às cartas ou tentam conhecer turistas estrangeiras que lhes proporcionem novas experiências. E profissionalmente até têm um local de ensaio com bom material de som disponível.

Tudo parece correr às mil maravilhas, quando no fim do mês de Março são informados pelo gerente que ocorrera um problema nos bancos e não lhes podia pagar já. Mas não tinham nada a temer que o patrão era homem de palavra, para mais muito rico e muito importante. Tinham de ter paciência e esperar alguns dias. Estas coisas às vezes acontecem no mundo dos negócios. E não lhes faltaria nada como até ali.

Durante Abril, mesmo sem receber há quase um mês, teimam em honrar a sua palavra, num hotel que não se percebia estar à beira da falência.

Os standards de hotel, canções-êxito ao género romântico de Sinatra ou Nat king Cole , que o contrato indicava que repetissem noite após noite, revelava o pouco conhecimento do gerente perante a mudança de gostos musicais dos seus clientes estrangeiros, e mesmo dos portugueses. Estes pediam aos músicos para tocar Beatles, Stones, Shadows, e mesmo Creedence Clearwater Revival. Os músicos acediam. Como já pouco tinham a perder não viam porque não ignorar esse ponto do acordo e era isso que ainda os conseguia animar a cada dia que passava.

Tanto que uma noite o sr. Ramos lhes perguntou que raio de música era aquela que agora lhes tinha dado para tocar.
‘Nada de jeito, coisas que os clientes nos pedem, já se sabe como são os ingleses, têm gostos estranhos’, desculparam-se airosamente perante a falta de informação do homem, que de dia para dia se mostrava mais preocupado com a situação do hotel. E se os clientes queriam- isso era bom para o negócio.

Numa dessas noites, que estivera pouco animada, recolheram-se cedo mas desanimados com a situação, terminada que estava a sua primeira e única série de temas da noite, pois todos os poucos clientes já se haviam retirado. Ainda ficaram por ali a conversar, no quarto que os albergava a todos. Como músicos, gostavam de ouvir rádio. A meio da conversa, ouve-se a canção portuguesa concorrente ao Festival Eurovisão da Canção desse ano.

‘O Paulo tem uma grande voz, não acham?!’
‘É! Mas gostava mais de o ouvir nos Sheiks. Ainda cheguei a ensaiar com eles uns dias.’
‘Eu acho que não! Aquilo era uma imitação da música inglesa, ao jeito dos Beatles. Temos que defender a nossa música, a nossa língua.’
‘Pois, e a nossa pátria, as nossas colónias, o império…’, escarneceu o nervoso Augusto levantado o tom de voz.
‘Ei, amigos, calma, não estamos aqui para isso, mas para esquecer isso.’
‘Como é que eu me posso alhear disso Jorge, mais cedo ou mais tarde, vêm buscar-me e vou lá bater’, continuou Augusto.
‘Vamos com calma pessoal, temos de manter este contrato até ao fim. Deixem-se disso, amanhã é outro dia.’
‘Talvez… o primeiro dia do resto da minha vida…estou aqui tão perto de Espanha, tenho um contacto para arranjar alguém que me passe. Desculpa-me só te dizer isto agora, mas foi mais por causa disso que eu vim para cá, e por que somos amigos há tantos anos, mas Rui, por favor vê lá se consegues falar amanhã com o Ramos, e arrancar-lhe algum deste dinheiro.’
‘Calem-se lá por favor, deixem ouvir isto. Isto não é possível, o Zeca Afonso na Rádio Renascença ?.’ pediu o Mário. ‘Passa-se algo estranho, isso é o «Grândola», isso está censurado.’
‘Então rapazes, eu sou o vosso agente, arranjei-vos este emprego, dou-vos comida, cama lavada e whisky todos os dias, e mesmo assim não se acalmam? Vamos mudar de assunto.’
Nisto batem à porta do quarto.
‘Porra! Não vos disse para se calarem…Quem é ? perguntou Rui.
Abriram a porta ao recepcionista que trazia um recado para o Sr. Augusto Lacerda. ‘É o seu irmão, que quer dar-lhe uma palavrinha’.

Quando Augusto volta do telefonema, deita-se na cama, calado mas sereno e parece mais feliz do que quando saíra porta fora.
‘Está tudo bem ?’ Querem saber, como se fossem um coro e não instrumentistas.
‘Está tudo bem! Mas não desliguem a telefonia…desculpa Rui, ter reagido assim, mas tenho andado muito tenso…eu não queria ir para a tropa, mas oxalá as coisas mudem esta noite…’
‘Quem é que te ligou ? O que é que se está a passar, Augusto ?
‘…bem, é que faço hoje dezanove anos e o meu irmão mais velho, que estava de serviço no quartel, fez questão de ser o primeiro a dar os parabéns ao benjamim da família.’
Aí os músicos entoaram a sua versão da canção mais ouvida em todo o mundo.

Só a voz colocada de Joaquim Furtado ao microfone do Rádio Clube Português, conseguiu silenciar este ‘parabéns’ a voçê:
“Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas, que desencadearam esta madrugada uma série de acções com vista à libertação do país do regime que há longo tempo o domina”

Passam a noite a beber whisky de ouvidos colados à telefonia até de manhã. Depois descem à recepção para o pequeno-almoço e aí, a caixinha que mudou o mundo passa a sê-lo realmente. A monótona e desinteressante RTP, terá tido nesse dia a maior audiência de sempre em Portugal, superando de longe a daquela noite em que Armstrong pisou a lua. Lisboa, é então o centro do mundo, por uma vez, nesse dia. Um grupo de militares portugueses tomou o poder, sem derramar sangue. E isso é mesmo História. Mas os músicos não podem, não devem, e concluem que essa não é a melhor hora de regressar a Lisboa. Estão eufóricos e querem celebrar.

Inspirados pelos acontecimentos tomam contam do palco da sala de baile do hotel e começam a tocar ainda a meio da tarde, fora da habitual hora de trabalho, tocando o que bem lhes apetece mas sobretudo tocam muita música portuguesa pela primeira vez. E assim vão tocando pela tarde fora, quando a revolução se começa a confirmar.

Os hóspedes, que começam a regressar ao hotel e aos seus quartos são surpreendidos pelo ambiente festivo e vão ficando por ali a ouvi-los em silêncio.
Ao início da noite ao mesmo tempo que Marcelo Caetano é levado do quartel do Largo do Carmo, o gerente indignado com o rumo dos acontecimentos, informa que vai abandonar o hotel. Vai dizendo que o país vai entrar numa anarquia, diz aos empregados que agora os revoltosos comunistas vão tomar conta dos bancos e não lhes pode pagar, nem aos músicos, pois que o dono daquele e de outros hotéis, já se foi embora para o Brasil.
Ninguém se parece importar muito com o miserável discurso do execrável Ramos. Mas já que era assim o bar, a garrafeira, e a cozinha passam a estar abertos a todos. São agora posse de todos. Dos hóspedes, dos trabalhadores e também dos seus convidados. As bebidas alcoólicas disponíveis no bar atenuam a já por si só inebriante felicidade natural.

O hotel é ocupado pelo povo em festa. São três dias e três noites, não de um carnaval atrasado de dois meses, mas já de muitos anos.
Os hóspedes maioritariamente estrangeiros não percebem nada do que se está a passar naquele momento, ali naquela bonita e soalheira região de clima temperado, numa brilhante primavera, nem muito menos naquele pacato país de brandos costumes. Ao princípio ficam um pouco apavorados e perguntam: ‘what the hell is going on here? A revolution? …What kind of revolution? Cada um tenta uma explicação no melhor inglês possível. ‘Freedom’, ‘Power to the people’. ‘Death to the fascists!’ Como se de um exercício de brainstorming se tratasse.
Os estrangeiros acham tanta piada ao exotismo da situação, que decidem juntar-se à festa e à banda lisboeta, que apenas era a ‘banda do hotel’ passam a chamá-la ‘The Red Carnations’ , porque como toda a gente trazem cravos vermelhos ao peito.

Os músicos ficam nessa festa popular até 29 de Abril. Depois despedem-se de todos para regressar a Lisboa para junto dos seus familiares e amigos, anunciada que está a maior concentração de sempre do povo português que teria lugar nesse 1 de Maio de 1974, e que a partir daí seria dia feriado em Portugal, celebrando-se o dia do trabalhador, nesse tempo em que o povo unido jamais seria vencido.

Augusto regressa à casa dos pais e recomeça as aulas de piano e composição. Tem de novo gosto e vontade em tocar e aprender.
A ex-banda de hotel mantém-se unida e depois de algumas semanas de ensaios começam então a tocar no Hot Clube de Portugal, interpretando nas suas versões de jazz instrumental os temas dos novos cantautores da então música popular portuguesa. O sucesso sorriu-lhes. ‘Os cravos vermelhos’ foram nesse ano a ‘banda residente’ desse e de muitos outros palcos portugueses.

Em 1980, Portugal era um país ainda alegre, onde tudo poderia ainda acontecer.

Augusto tornou-se o compositor principal e líder do quarteto que evoluiu tanto que começou a ser falado também fora de Portugal. Podia agora passar a fronteira do país, também fisicamente, e não seria para África . Nunca esqueceu o que às escondidas ouvira numa conversa lá em casa, numa distante noite de inverno. Tornara-se realidade a frase profetizada por um amigo dos seus pais: ‘Quando o teu puto tiver idade para ir para a tropa já a guerra acabou, vais ver, acredita no que te digo Lacerda’ , palavras essas que durante anos o encheram de esperança e força para continuar a acreditar que um dia seria livre.

O A. Lacerda Quartet começou a tocar por toda a Europa como representante do novo país e da sua música.
Mas por exigência da profissão que abarcara Augusto passava cada vez mais temporadas lá fora, tendo vivido em Madrid, Paris e Berlim, dedicando-se posteriormente a uma bem sucedida carreira a solo. Durante muito tempo apenas visitava Portugal a espaços para fazer férias e rever a família e os amigos.
Mas depois de muitos anos de discos, gravações e longas digressões, sentiu de repente uma vontade de regressar à sua terra. Conseguiu assim chegar mesmo a tempo de adquirir a casa dos seus pais, onde crescera.

Mas o Portugal que Augusto encontra em 2004, é um país já a ficar deprimido, onde pouco poderá ainda acontecer, a não ser tudo o que a globalização e a comunidade europeia deixarem para nos entreter.

Quando no dia em que Augusto teve outra vez tempo para se sentar em casa a ler o jornal e ligou a televisão era o dia do jogo da final do campeonato, que celebrava aquele que consideravam ser o maior evento desportivo jamais realizado no país.

No estádio de futebol, o menino de ouro, que ainda daria o seu melhor, regressaria de novo à ilha, não do país que o viu nascer, mas onde nasceu o desporto do qual diziam ser ele o melhor. Não podia sair de Old Trafford, mas já começava a entrar na estrada da inevitável e exagerada exposição pública da sua vida privada. E nessa tarde de Junho, mesmo estando dentro do relvado, foi apenas mais um entre os milhares de portugueses vestidos de camisola grená e calções verdes, que não conseguiu festejar golos, apesar de tantas bandeiras penduradas nas janelas.

Na televisão plasma por cabo, o nosso senhor primeiro-ministro anunciaria a sua partida para Bruxelas como se de um dever patriótico se tratasse, lançando o país numa crise política e social que estará para durar. Através dessa caixa que o mundo transformou num painel estreito, os políticos vindouros continuarão a mentir semanalmente ao povo de uma nação cheia de males de desemprego, fome e corrupção apesar de todos nós quereremos ainda acreditar num estado que continua a dizer-se de direito democrático, mesmo depois do que fomos assistindo ao longo destes 30 anos.

A cantora de ascendência crioula que foi promovida ao estrelato meteoricamente, deseja ir instalar-se em Nova Iorque para indirectamente se ir afastando do forçado rótulo de nova diva da canção de Lisboa, e do destino do seu país. Enfim, da essência do nosso fado. No entanto, essa abertura de identidade criativa, é que a poderá manter ainda famosa e independente por mais algum tempo.

E…. uma juventude, que tem de demorar-se a ficar adulta por força das circunstâncias da crise, por o curso não ter saída, e tem de arranjar trabalhos precários e temporários, pois enquanto não conseguem nada melhor os pais lá fazem por manter os filhos no sonho da ‘adolescência’ por mais algum tempo.

‘Tchalalalalauuuu….’ tocam assim os telefones num som agudo, digital, sem fios, demasiado estridentes e utilizam-se para se dizerem coisas realmente normais. Boas ou más. Por isso Augusto sente um arrepio de cada vez que os ouve. Treme só de pensar, que lhe vão perguntar onde está e o que está a fazer. Esta chamada era das más. O que de pior se podia esperar ouvir por aqueles dias. A voz dizia que já tinha descansado o seu amigo Jorge.

Ficou imóvel junto à janela da sala da velha casa onde nascera, agora restaurada e com vidros duplos, o que lhe permitia compor sem a interferência dos ruídos que vinham da rua. Dali podia ver o jardim e relembrar quando nos fins de tarde ou noite ali se sentava nos bancos com o amigo a falar das coisas da vida.
Passaram mais de trinta e cinco anos em apenas alguns minutos. Dirigiu-se então para o piano terminando a peça começada ainda em Londres, no dia em que se decidiu pelo regresso a Lisboa e que às primeiras notas tomara naturalmente o título de ‘a sort of homecoming’. Tinha estado a trabalhar esta composição nestas últimas semanas, dedicando-a ao amigo Jorge, desde que soubera da sua doença. Chamava-se agora ‘uma espécie de regresso a casa’ e ia estreá-la no concerto que daria no Centro Cultural de Belém, para o lançamento do disco de retrospectiva dos seus 30 anos de carreira.

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